Durante o período colonial, a organização política no Brasil era parte do Império Português. Prevalecia uma fragmentação do poder político: os grandes proprietários rurais dominavam suas fazendas e aplicavam a lei conforme seus interesses. Em certas regiões, como Minas Gerais na época da mineração, nos séculos XVII e XVIII, o controle da Coroa portuguesa foi mais direto. Mas, como notou o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho (1939-), não havia um poder público no Brasil, isto é, um Estado que garantisse a mesma lei para todos. Alguns indivíduos estavam abaixo da lei (como os escravos), outros acima dela (como os grandes proprietários).
O período colonial deixou diversas heranças negativas para a construção da cidadania após a Independência, entre as quais se destacam:
• a escravidão, em razão da qual grande parte da população brasileira não dispunha nem mesmo dos mais elementares direitos civis (sem falar dos políticos e sociais);
• o poder absoluto dos grandes proprietários dentro de suas fazendas, onde a lei não entrava: eles mesmos administravam a justiça, de acordo com seus interesses pessoais;
• um Estado (herdado dos portugueses) marcado por grande confusão entre o público e o privado.
Em Estados desse tipo, que Max Weber chama de patrimonialistas, a atividade política, como notou o sociólogo Simon Schwartzman (1939-), é marcada pela associação com o governo. Em vez de exigir direitos para todos, os grupos, classes ou indivíduos apoiam o governo em troca de favores pessoais. Por exemplo, em lugar de se organizarem para exigir maior liberdade econômica para todos, os comerciantes tentam receber ajuda do governo para si (empréstimos, perdão a dívidas, contratos lucrativos com o setor estatal, etc.), em troca de garantir seu apoio ao governo.
Em um Estado moderno, em que predomina a democracia, os grupos, classes e indivíduos lutam para mudar as leis, que são as mesmas para todos. Em um Estado patrimonialista, em vez de lutar por direitos, os grupos, classes e indivíduos pedem favores. O sociólogo, jurista, historiador e cientista político Raymundo Faoro foi um dos grandes estudiosos das características do Estado no Brasil.
Nessa herança colonial estão as origens de muitos problemas atuais da sociedade brasileira. De um lado, a extrema desigualdade social e a exclusão de grande parte da população dos direitos mais elementares.
De outro, um Estado bastante comprometido com interesses particulares, que busca tirar vantagens do patrimônio público, prática que hoje em dia chamamos de corrupção.
Na luta pela cidadania, a mais notável transformação política do Brasil no século XIX foi a abolição da escravatura em 1888. O abolicionismo foi o primeiro grande movimento social brasileiro: como resultado, os negros passaram a ter ao menos o mínimo de direitos civis. Entretanto, a abolição não foi acompanhada de qualquer esforço para integrar os recém-libertos à sociedade brasileira. Os negros não receberam nem educação nem terra, duas coisas que poderiam lhes garantir participação na economia nacional.
A proclamação da República não trouxe mudanças significativas para a cidadania brasileira. O poder passou do governo central para os estados, em que as mesmas oligarquias continuaram mandando. As eleições, que existiram no Brasil desde a Independência, continuaram sendo inteiramente fraudadas, de modo que não é possível falar de progresso dos direitos políticos.
Os direitos civis, mesmo após o fim da escravidão, ainda eram frágeis, e os direitos sociais mal apareciam no discurso oficial.
A Revolução de 1930 foi um divisor de águas na história nacional, tanto por progressos alcançados na esfera dos direitos políticos, quanto pelas conquistas na área dos direitos sociais no período após a revolução. Houve avanços políticos importantes, como o direito do voto feminino, conquistado em 1932. Porém, em 1937 teve início a ditadura do Estado Novo, que reverteu essas conquistas. A ditadura de Getúlio Vargas foi, aliás, o único período da história brasileira em que não foram realizadas eleições, nem mesmo fraudulentas.
O grande progresso da cidadania entre 1930 e 1945 aconteceu no âmbito dos direitos sociais: o Brasil passou a ter uma legislação trabalhista, salário mínimo, regulamentação das horas de trabalho, do trabalho feminino, do trabalho infantil e da previdência social. Vale notar, entretanto, que esses direitos não se estenderam aos trabalhadores rurais, uma amostra do poder que ainda tinham os grandes fazendeiros.
Para José Murilo de Carvalho, a conquista dos direitos sociais antes dos direitos políticos e dos direitos civis teve consequências importantes: reforçou a ideia de que o máximo que a população pode esperar é que o Poder Executivo (o presidente da República) lhe “dê” direitos. Essa impressão foi ressaltada pelo fato de que, no primeiro período democrático brasileiro, de apenas 19 anos (1945 a 1964), apesar de os brasileiros terem, pela primeira vez, conquistado direitos políticos, quase não houve progresso nos direitos sociais. Também é importante notar que entre 1945 e 1964, os analfabetos, que eram a maioria da população brasileira, não tinham direito a voto.
Do golpe militar de 1964 até 1985 tivemos outro período ditatorial, com uma sucessão de governos militares. Esse regime teve uma característica singular, que analisaremos no próximo item: as eleições para vários cargos (em especial deputado e senador) foram mantidas, embora com muitas restrições, de modo a sempre garantir a vitória do governo. Dessa forma, também é difícil ver aí um progresso dos direitos políticos. Houve, sim, novos progressos nos direitos sociais, com a extensão da previdência social ao setor rural.
A Constituição de 1988, que consagra o retorno da democracia brasileira (ocorrido em 1985) é um marco em nossa história política. Os direitos políticos foram garantidos inclusive aos analfabetos, e desde então nunca foram suspensos. As eleições deixaram de ser fraudadas e há poucas dúvidas de que somos uma democracia. A partir da década de 1990, gravíssimos problemas nacionais, como a inflação (subida descontrolada de preços) e a desigualdade social começaram a ser enfrentados por governos legitimamente eleitos.
Ainda há sérias ameaças à cidadania brasileira, que permanece muito frágil. Mas é inegável que em nenhum momento de nossa história os cidadãos acumularam mais conquistas do que no período democrático recente. Podemos esperar que com o passar do tempo, essas conquistas desenvolvam em nossa cultura política a ideia de que os direitos não devem ser dados como favores do governo, mas sim conquistados para todos os cidadãos, por meio da luta democrática.
A frágil democracia brasileira precisa de tempo. Quanto mais tempo ela sobreviver, maior será a probabilidade de fazer as correções necessárias nos mecanismos políticos e de se consolidar. Sua consolidação nos países que são hoje considerados democráticos, incluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos. É possível que, apesar da desvantagem da inversão da ordem dos direitos, o exercício continuado da democracia política, embora imperfeita, permita aos poucos ampliar o gozo dos direitos civis, o que, por sua vez, poderia reforçar os direitos políticos, criando um círculo virtuoso no qual a cultura política também se modificaria.
Atividade
7º) Durante o período colonial, a organização política no Brasil era parte do Império Português. Prevalecia uma fragmentação do poder político e não havia um poder público no Brasil. O que podemos citar como heranças negativas para a construção da cidadania desse período?
a) A poder absoluto dos grandes proprietários.
b) Definição clara entre o público e o privado.
c) Estado forte.
d) Tendência para a justiça social.
8º) Nos Estados em que predomina a democracia, os grupos, classes e indivíduos lutam para mudar as leis, que são as mesmas para todos. Em outros, em vez de lutar por direitos, os grupos, classes e indivíduos pedem favores. Como são classificados esses dois tipos de Estados?
a) Democrático e fundamentalista.
b) Autoritário e democrático.
c) Moderno e patrimonialista.
d) patrimonialista e democrático.
9º) O que podemos esperar de uma nação que conquista direitos sociais antes dos direitos políticos e dos direitos civis?
a) Que essa sociedade lute por direitos.
b) Que o Poder Executivo lhe “dê” direitos.
c) Que tenha maior engajamento político.
d) Que seja uma sociedade moderna e a frente de seu tempo.
Sociologia hoje (265 – 268): volume único: ensino médio /Igor José de Renó Machado… [et al.]. – 1. ed. –São Paulo: Ática, 2013.