Cultura é conceito utilizado pela Antropologia, ciência que faz parte da grade curricular da Sociologia e visa descrever as sociedades humanas a partir de sua produção artística, modo de ser e de pensar do povo, indo das mais elementares formas de organização social até as mais complexas.
O sentido de cultura é amplo. O que
nos interessa aqui é saber que a cultura corresponde a um conjunto de hábitos,
crenças e conhecimentos de um povo ou um
determinado grupo artístico (literário, dramatúrgico,
musical, derivado das artes plásticas etc.) que cultiva, de algum modo, um
padrão estético semelhante.
Em virtude da variedade de significados
dessa palavra derivada do latim que deu origem tanto a expressões de cuidado e
cultivo quanto a expressões que designam conjuntos de conhecimentos e hábitos
de determinadas sociedades, é difícil realizar o seu esgotamento conceitual.
Podemos designar, com a palavra cultura, o cultivo
de vegetais (a cultura de tomates ou o cultivo de tomates), o cultivo
do conhecimento humano alcançado pela racionalidade e pelo
senso estético (quando nos referimos a uma pessoa culta, justificando que ela é
letrada, erudita, que conhece vários idiomas ou é conhecedora de arte) e a
cultura de um povo, de uma região, de uma nação, que se apresenta em suas
diversas facetas: religião, arte, culinária, costumes, conhecimento etc.
De todas essas formas a que a
palavra cultura pode remeter, a última é a que será tratada neste texto, pois é
a que se encaixa no espectro de assuntos estudados pela Antropologia, uma
disciplina que surgiu no século XIX, em meio ao surgimento da
Sociologia. As duas áreas compõem, junto à Ciência Política e à
Economia, o conjunto que forma as chamadas Ciências Sociais.
O CONCEITO DE CULTURA NO SÉCULO XX
Ao longo do século XX, o conceito
de cultura foi incorporado ao senso comum. Passou além dos discursos acadêmicos
e ganhou espaço em discussões públicas, como as lutas por direitos. A ideia de
cultura que prevalece hoje no senso comum deve muito ao pensamento de Boas: um
conjunto estável de hábitos, práticas, costumes, tecnologias, etc. No campo
teórico da Antropologia, entretanto, esse conceito passou por inúmeras
revisões. Um antropólogo, quando fala em cultura, está falando de algo
diferente daquilo que o senso comum imagina. Nas Ciências Sociais os conceitos
parecem ganhar vida própria e são empregados nas mais diversas situações, em
perspectivas muito díspares. Muitas vezes, usando um mesmo termo, como
“cultura”, por exemplo, um sociólogo e um cientista político podem estar se
referindo a aspectos extremamente diferentes.
O importante aqui é entender como a
Antropologia prosseguiu na reflexão sobre a cultura, a partir dos trabalhos de
Boas e seus alunos. Essa continuação ocorreu basicamente nos Estados Unidos,
tendo havido algumas reviravoltas e até mesmo críticas severas ao conceito. Logo
após a geração dos primeiros alunos de Boas, no pós-Segunda Guerra Mundial, um
movimento intelectual liderado por antropólogos como Marvin Harris (1927-2001)
e Julian Steward (1902-1972) resgatou uma teoria da evolução que havia sido
criticada por Boas. Essa teoria, entretanto, não seguia os termos dos
evolucionistas do século XIX. A partir de uma perspectiva marxista, fundada na
evolução dos sistemas econômicos (dos mais simples aos mais complexos), Harris
e Steward repudiavam o conceito proposto por Boas, considerando que o foco
exagerado nas especificidades de cada cultura impedia uma reflexão mais
abrangente sobre a humanidade.
Na década de 1960, uma nova geração
de antropólogos trouxe outros significados ao conceito de cultura. Destacam-se
nesse momento os trabalhos dos norte-americanos David Schneider (1918-1995),
Clifford Geertz (1926-2006) e Marshall Sahlins (1930-), que criticaram o
conceito de cultura como um todo integrado e estático. A crítica desses
intelectuais se referia às grandes transformações ocorridas no mundo após a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em um contexto que incluía mu danças
profundas — desde as lutas pela independência em países antes dominados por
potências europeias até as revoluções culturais da década de 1960 —, as sociedades
observadas pela Antropologia também passavam por transformações que um conceito
estático de cultura não dava conta de explicar.
Para Schneider,
Geertz e Sahlins, a cultura continuava a ser um todo integrado, mas era
eminentemente dinâmica, sujeita a mudanças. Nessa visão, a cultura deixa de ser
um conjunto de práticas observáveis e passa a configurar um conjunto de códigos
simbólicos. Ou seja, é mais semelhante a um código do que a um conjunto de
comportamentos: pode ser comparada
a um conjunto de regras que é internalizado pelas pessoas desde a infância.
Para esses autores, cultura não é o que as pessoas fazem, mas sim o que elas
pensam: está presente em todos os indivíduos que vivem em comum, é
compartilhada e transmitida como um código permeado pela linguagem e por vários
conceitos que a linguagem traz consigo.
A ideia de cultura como um código
de regras e ordens que está na cabeça das pessoas, e não nos comportamentos,
permite muitas possibilidades de pensar a dinâmica e a transformação das
culturas. Como já vimos, inicialmente os antropólogos observavam apenas os
comportamentos e os consideravam cultura.
Nesse contexto, quando os
comportamentos mudavam, a impressão era que a cultura tinha se “perdido”. Na
primeira metade do século XX, era comum os antropólogos lamentarem a “perda” de
cultura de várias populações pelo mundo. Isso porque o avanço do sistema
econômico ocidental produziu grandes transformações entre sociedades antes
isoladas: rituais deixaram de ser realizados, técnicas tradicionais foram
abandonadas, crenças nativas foram atropeladas por religiões ocidentais.
Tudo isso era considerado pelos
antropólogos “perda”, “aculturação” aos valores ocidentais, já que eles
entendiam a cultura como a soma dos comportamentos visíveis. Quando a cultura
passou a ser vista como um código mental, os comportamentos se tornaram
consequência desse sistema, e podem mudar sem comprometer o sistema,
organizando novas práticas e inventando novas tradições, embora ainda seguindo
certas regras básicas. Resumindo, a cultura não se limita mais a uma série de
comportamentos, mas constitui um sistema que organiza a experiência das pessoas
na vida, ordenando até mesmo os processos de transformação.
Quando um costume muda ou uma
prática nativa de outra cultura é adotada, isso acontece segundo uma lógica
cultural. Pense em um conjunto de rappers brasileiros: embora produzam uma
música que não é original do nosso país, eles a utilizam para expressar suas
ideias e uma crítica social que se refere ao seu cotidiano. Será que eles são
menos brasileiros por se expressarem por meio do rap? Ou será que eles usam o
rap para expressar um ponto de vista essencialmente brasileiro, e nesse sentido
estariam abrasileirando o rap? Os antropólogos do final do século XX tenderiam
a preferir a segunda resposta, tornando o conceito de cultura mais dinâmico.
Atividade
6º) Ao longo do século XX, o conceito de cultura foi incorporado ao senso comum. Qual é a ideia de cultura que prevalece hoje entre as pessoas comuns?
7º) Para a Antropologia do século XX, a cultura continuava a ser um todo integrado, mas era eminentemente dinâmica e sujeita a mudanças. Como seria a cultura nessa visão?
8º) Por que, na primeira metade do século XX, era comum os antropólogos lamentarem a “perda” de cultura de várias populações pelo mundo?
Sociologia hoje (55- 56): volume único: ensino médio /Igor José de Renó Machado… [et al.]. – 1. ed. –São Paulo: Ática, 2013.