Um impulso para a crítica da ideia de separação entre natureza e cultura veio do trabalho de Bruno Latour (1947-), filósofo, sociólogo e antropólogo francês que se dedica a entender a ciência moderna e produz o que podemos chamar de uma Antropologia da ciência. Segundo ele, nosso pensamento se apoia na certeza de que há uma distinção radical entre o mundo dos humanos e as “coisas lá fora”. Essas coisas são os objetos, os não humanos em geral. Essas coisas que estão lá fora, separadas do mundo dos humanos, formam a natureza, esse mundo que é objeto de atenção dos humanos, mas que é tratado como se não tivesse vida inteligente ou fosse inerte.
A ciência seria um discurso sobre essa distinção, pois descreve a natureza (os animais, os átomos, as massas de ar, enfim, tudo o que possa constituir seu objeto). Mas, ao fazer sua pesquisa entre cientistas, Latour descobre que a ciência, na verdade, não trata do “mundo lá fora”, mas sim de um conjunto de acordos e disputas entre os cientistas. O que entendemos como natureza depende do acordo entre uma multidão de pessoas e só existe como natureza enquanto esse acordo durar. Assim, aquilo que vemos como avanço científico é fruto de uma política de acordo entre os cientistas. Por exemplo: no começo do século XIX, acreditávamos que o átomo era a menor partícula do Universo. No fim do mesmo século, passamos a acreditar que existem partículas menores que o átomo, os elétrons, o que produziu uma mudança na ideia da natureza das pequenas partículas. Hoje, acredita-se em partículas ainda menores, como os bósons, quarks, neutrinos, fótons, etc., mas não há consenso sobre a natureza dessas partículas.
Nesse exemplo o que mudou não foi a “natureza”, mas o entendimento humano e coletivo, fruto da política dos cientistas em impor uma certa visão. A natureza nunca esteve separada dos seres humanos. Não existe separação universal entre natureza e cultura, que se aplicaria a toda humanidade: essa é uma noção particular, específica da nossa forma “ocidental” de pensar, derivada de uma noção particular de ciência.
A concepção de Bruno Latour gerou interesse no que ele chamou de “Antropologia simétrica”, ou seja, a ideia de que o antropólogo deve buscar tratar sua sociedade e a do “outro” da mesma maneira. Uma postura assimétrica é aquela em que, ao estudar uma sociedade indígena, o pesquisador se preocupa em explicá-la pelo que ela tem de mais importante, ao passo que, quando olha para uma sociedade “complexa”, contenta-se em estudar sua periferia (como vimos no Capítulo 3). Latour afirma que, ao olhar para sua própria sociedade, o antropólogo deveria fazer o que faz entre os indígenas: olhar para o centro da forma de pensar, olhar para a cosmologia. E o centro da cosmologia da sociedade ocidental seria, para Latour, justamente a ciência.
A crítica à divisão entre natureza e cultura teve ainda outras consequências no pensamento antropológico. A ideia de que não existe “lá fora” um mundo natural universal que é preenchido de formas alternativas por diferentes culturas abriu muitas portas. Se antes um antropólogo achava que cada cultura resolvia, à sua maneira, como pensar a natureza, ele necessariamente partia do pressuposto de que havia uma separação universal entre natureza e cultura. Mas e se pensarmos que essa separação não existe? E se, além disso, resolvermos dar aos conceitos nativos o mesmo valor que damos aos nossos? Ao descrever formas de pensamento que não pressupõem a divisão natureza/cultura, os antropólogos começaram a criticar as próprias noções antropológicas fundadas nessa divisão. De fato, está acontecendo o que Roy Wagner dizia ser necessário: reinventar nossa cultura a partir da invenção da cultura dos outros!
A inglesa Marilyn Strathern foi uma das antropólogas que desenvolveu essa perspectiva crítica (chamada de Antropologia reflexiva). Ao analisar populações da Melanésia, Strathern afirma que nessa sociedade inexiste a noção de indivíduo, assim como inexiste a noção de sociedade.
A etnografia da Melanésia, portanto, coloca em dúvida nossas certezas baseadas nos grandes divisores (como sociedade/indivíduo, no caso). Para os melanésios, cada pessoa contém em si mesma várias outras pessoas, como se cada um fosse um repositório de relações sociais estabelecidas ao longo da vida. Eles também acreditam que as pessoas são divisíveis, e não indivisíveis, como pensamos em nossa sociedade.
Por exemplo, quando uma mulher tem seu primeiro filho, ela precisa se desfazer um pouco das relações de si mesma para refazer-se como mãe. Isso indica outra diferença em relação ao pensamento ocidental: entre os melanésios que estudou, Strathern não encontrou nada correspondente à nossa noção de sociedade.
O fato de as sociedades melanésias pensarem o mundo por meio de conceitos diferentes daqueles utilizados pelas sociedades ocidentais e de não adotarem categorias equivalentes às de indivíduo e sociedade sugere a possibilidade de uma Antropologia reversa. Ou seja, podemos nos imaginar como melanésios e questionar nossos conceitos e a suposta validade universal de distinções como natureza/cultura e indivíduo/sociedade. Essa perspectiva pressupõe levar a sério o que nos diz o nativo e não mais jogar o jogo em que o nativo é “interpretado” pelo antropólogo (ou seja, a ideia de que o nativo não sabe exatamente o que é sua cultura, ao passo que o antropólogo sabe exatamente qual é a cultura do nativo).
No Brasil, essa premissa de uma nova Antropologia “pós-social” ou “ontológica” foi desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro (1951-), antropólogo brasileiro conhecido no cenário internacional por seus estudos sobre as cosmologias indígenas da Amazônia. Para entender a vida dessas populações foi necessário romper com o grande divisor natureza/cultura, pois a visão de mundo desses indígenas nada tem a ver com o que pressupõem nossas categorias. Para os ameríndios da Amazônia, o que é universal não é a natureza, mas justamente o contrário: a cultura. Em tudo e em todo lugar existe cultura, ao passo que o que realmente muda são as naturezas. A essa concepção Viveiros de Castro deu o nome de multinaturalismo.
Vejamos um exemplo do que ele chamou de “perspectivismo ameríndio”: do ponto de vista indígena, qualquer animal é humano, só que essa humanidade é revestida de naturezas diferentes (por isso o termo “multinaturalismo”). O jaguar é tão humano quanto o próprio indígena, mas tem corpo de jaguar (outra natureza). O que o jaguar vê quando vê o indígena é o mesmo que o índio vê quando vê uma presa a ser caçada. Há apenas uma mudança de perspectiva. Também o porco-do-mato é um humano, que vê sua comida como comida humana, e vê os humanos como espíritos canibais, pois os humanos caçam e matam porcos-do-mato. O perspectivismo ameríndio confere humanidade a tudo aquilo que, na ciência ocidental, consideramos “não humano”. E para os ameríndios não existe uma natureza comum a todos os seres: é justamente a natureza que diferencia os seres!
O pensamento ameríndio vira de cabeça para baixo o pensamento científico. Viveiros de Castro radicaliza a ideia a ponto de considerar o perspectivismo como equivalente a uma teoria antropológica. Para ele, o perspectivismo pode ser um instrumento teórico para pensarmos a nós mesmos, por exemplo. Assim como Strathern e Wagner, Viveiros de Castro confere à Antropologia contemporânea uma característica simétrica: o conhecimento nativo é tão valioso quanto o nosso e pode ser uma forma de nos enxergarmos com outros olhos.
Atividade
3º) Por que o entendimento humano e coletivo, fruto da política dos cientistas em impor uma certa visão, pode mudar?
4º) Por que a Sociologia afirma que, ao olhar para sua própria sociedade, o antropólogo deveria fazer o que faz entre os indígenas: olhar para o centro da forma de pensar, olhar para a cosmologia?
5º) Por que para a antropologia o conhecimento nativo é tão valioso quanto o nosso e pode ser uma forma de nos enxergarmos com outros olhos?
Sociologia hoje (99- 100): volume único: ensino médio /Igor José de Renó Machado… [et al.]. – 1. ed. –São Paulo: Ática, 2013.