Nos anos 60 e 70 do século XX a escola pública brasileira não era lugar para os mais humildes. Na verdade, preparava-se a classe média para uma posição intermediária entre os mais pobres e a elite nacional. Aqueles que concluíam o ginásio podiam se colocar em um escritório, um cargo de encarregado ou supervisor em uma fábrica, ou até mesmo a gerência de uma pequena empresa. O científico era garantia de uma posição de mais qualidade. Com certeza um cargo público no Banco do Brasil, uma posição de chefia em uma repartição de um ministério qualquer, o suboficialato nas forças armadas, ou ainda almejar a entrada em uma faculdade. O ensino era rigoroso e de qualidade. Os mais pobres eram descartados ainda no primário. Ainda que, concluir o primário já garantia alguma diferenciação profissional. Muitos se orgulhavam de tê-lo concluído.
Na segunda metade desta década o país ingressou em um forte ciclo de industrialização. A prosperidade da economia mundial e a abundância de recursos baratos favoreceu o crescimento do parque industrial brasileiro. Era o “Milagre Brasileiro”. Havia necessidade urgente de mão de obra de nível elementar e médio que pudesse ocupar os postos abertos na produção nacional. O governo militar não hesitou: promoveu uma grande reforma educacional que diminuiu de dez para oito anos o tempo do ensinou fundamental. Acabou com disciplinas consideradas desnecessárias, como o latim e o grego, e fundiu outras consideradas inconvenientes no período, como história e geografia. Foram legalizados e estimulados novos cursos técnicos. Abandonou-se o caráter humanista da educação e adotou-se uma proposta tecnicista. O importante era fazer e não pensar.
Porém isto não bastava. Era necessário que um grupo maior de pessoas tivesse acesso a esta qualificação de forma a maximizar a formação de técnicos. Era preciso que os mais pobres frequentassem a escola até o fim do ensino médio. Iniciou-se um processo de universalização da educação. Isto, obviamente, exigiria uma maior infraestrutura material. Mais escolas e mais professores. Isto não foi previsto! Optou-se por uma solução mais simples e mais barata: aumentar-se o número de alunos com a manutenção das condições materiais. O resultado final desta reforma já poderia ser previsto. A prosperidade arrefeceu ao longo da década de 70. Crises da economia mundial diminuíram o ritmo de crescimento da economia brasileira. O endividamento da década de 70 gerou a maior dívida externa do mundo, paga com juros escorchantes e o Brasil foi à falência no início da década de 80. Se a qualidade da educação já havia caído com a universalização sem a contrapartida material, com a crise financeira generalizou-se. Durante toda a década de 80 a escola pública brasileira se degradou atingido a pior qualidade de toda a sua história.
O fim da ditadura militar trouxe uma nova realidade para a escola. Ela se tornou moeda eleitoral entre os mais pobres. Perdeu o que restava de sua característica instrucional e aderiu a uma proposta assistencialista e paternalista. A classe média a abandonou definitivamente e a qualidade na formação intelectual das crianças desapareceu. Durante toda a década de 80 os últimos traços de excelência de ensino acabaram. Não havia mais como se manter as aparências. Porém a recente democracia nacional exigia uma propaganda de sucesso e realizações. Foi quando se iniciou a manipulação de resultados.
Ao longo da década de 90 promoveu-se discretamente a “maquiagem” de resultados. Com a mentira ideológica da adoção de sistemas mais modernos de ensino iniciou-se a farsa da aprovação compulsória. A média para a reprovação de alunos diminuiu até apenas 35% de aproveitamento em cada disciplina. Deixou de ser necessário apenas um único componente curricular para a reprovação para gradativamente se chegar à obrigatoriedade de três. Disciplinas como língua estrangeira, educação física e artes, não poderiam mais reprovar. Surgiu a dependência e os professores passaram a ser coagidos a não reprovar. O professor que desse uma nota baixa era intimado a se explicar e obrigado a apresentar “soluções” para corrigir o problema. O ônus pelo mau rendimento se transferiu do aluno para o professor. Isto escondeu a falência do sistema durante alguns anos.
É claro que esconder a realidade não altera a percepção que as pessoas têm dela. Gradativamente ficou clara a péssima qualidade da formação de nossas crianças e a escola pública passou a ser razão de vergonha para toda a sociedade. Os governos populistas e assistencialistas tinham formado uma geração inteira de analfabetos funcionais. Milhares de crianças permaneciam em nossas salas de aula. Não poderiam voltar às séries iniciais, porém não conseguiam ir adiante. Milhares de analfabetos permaneciam sem qualquer perspectiva. Nasceu então a proposta que tentaria livrar a escola dos milhares de analfabetos que cruelmente por ela foram gerados, as “Turmas de aceleração” e a “Correção das Defasagens Idade/Série”.
O discurso oficial era de que estas crianças formariam turmas especiais, onde teriam um curso diferenciado permitindo que conteúdos de várias séries fossem ministrados em um período mais curto de tempo. Tudo nunca passou de fraude. Os conteúdos foram simplificados ou simplesmente reduzidos. A reprovação foi proibida nestas classes e estas crianças foram literalmente empurradas para fora da escola. Nunca receberam o tratamento profissional que demandavam. Um único professor foi designado para cada uma destas classes e recebeu a orientação que fizesse “o possível”. Normalmente um professor convencional, sem uma formação específica. Não recebeu qualquer treinamento distinto que o diferenciasse de qualquer outro professor da rede. Tudo não passava de um engodo. Uma mera “correção de fluxo” com o “descarte das peças defeituosas”. Crianças vítimas de sérios problemas tiveram suas dificuldades ignoradas e receberam diplomas que não passavam de “letra morta”. Foram deixados à própria sorte.
Por fim, estes projetos foram entregues a fundações e instituições que não possuem nenhuma identidade com a escola pública. A educação não passa de um negócio e os alunos de clientes.
A grande maioria destas crianças possui dificuldades comuns, porém que se não são solucionadas corretamente tendem a se perpetuar. Dislexia, disgrafia, problemas comportamentais, síndromes diversas, desnutrição, problemas neurológicos e psiquiátricos, são apenas alguns destes itens. Muitos convivem com situações de pobreza extrema, violência doméstica e abandono familiar. Outros foram expostos a violências sexuais ou exploração econômica. Alguns presenciam diariamente em seus lares problemas como o alcoolismo, dependência química, prostituição e promiscuidade. A gravidez precoce, as doenças sexualmente transmissíveis e o aborto também não são estranhos a estas crianças. A criminalidade, a violência urbana e a falta de perspectivas econômicas e sociais permeiam todos estes problemas.
Estas crianças não necessitam de projetos fraudulentos e inócuos. Precisam de psicólogos, médicos, pedagogos, assistentes sociais e professores qualificados. Precisam de escolas aparelhadas e que as atraiam. Que as levem a imaginar e desejar um futuro diferente.
Não será com projetos de aceleração que construiremos uma escola pública de qualidade. Nem com fraudes ou maquiagens. Será com uma escola democrática e inclusiva. Uma escola que privilegie a qualidade e não o custo, a sociedade e não o cargo, o futuro e não a eleição.
* Marcos Rodrigues é professor de história da Rede Municipal do Rio de Janeiro – O texto será incorporado ao Dossiê da Educação Carioca entregue ao Ministério Público pelo Sepe Regional 7.